Análise de novelas e séries: aproximando
o cotidiano da sala de aula.
Introdução
A cena escolhida refere-se a um
discurso de campanha política e é parte da novela O Bem-Amado de 1973 da TV
Globo, baseada no livro homônimo escrito por Dias Gomes em 1962 e alcançou
grande audiência e popularidade, sendo a primeira novela colorida da história.
O estilo de farsa política driblava a censura da época da ditadura para tratar no fundo de um assunto
sério: a política sem escrúpulos, truculenta e corrompida dos coronéis “donos
do poder” da época. É de se destacar o
tom jocoso do discurso do Coronel Odorico Paraguaçu que se candidata a
Prefeitura da cidade fictícia de Sucupira na Bahia, tendo como
plataforma política a construção de um cemitério na cidade, já que os defuntos
eram enterrados na cidade vizinha. O rico e poderoso Odorico descobriu uma
forma de chegar ao cargo público e se beneficiar com a construção do cemitério
em Sucupira, usando de todos os meios, lícitos e ilícitos para alcançar seu
objetivo. Este excerto da obra ganha importância para a discussão em sala de
aula por demonstrar claramente o poder exercido pelo personagem principal
Odorico Paraguaçu sobre o povo da cidade, caracterizando uma hegemonia, termo
do filósofo marxista Antonio Gramsci, que se refere ao “domínio exercido pelo
poder de um grupo sobre os demais, baseado mais no consenso do que no uso da
força” (RESENDE; RAMALHO, 2009, p.43).
Apresentação
A
cena do discurso de Odorico em campanha para Prefeito, que se dá num palanque
montado na praça da pequena cidade encontramos uma fala teatral “afetada”,
grandiloquente, teatral, verborrágica, rebuscada, sendo muitas vezes vazia em
termos de conteúdo, procura seduzir os incautos eleitores. A posição do
palanque demonstra a dominação do povo: os poderosos da cidade em cima e o povo
embaixo.
Transcrição
dos diálogos da cena analisada:
Odorico (em altos brados, gesticulando): Meus conterrâneos de Sucupira! Essa cidade num
pode continuar nessa situação! (pausa para aplausos e apoio da população)
Povo: Gritos
de apoio, todos ovacionando e aplaudindo Odorico, exceto um personagem de braços
cruzados, calado e sério logo na frente da multidão, o Nezinho do Jegue.
Odorico (continua no mesmo tom alto no palanque): Na
atual cunjuntura:: a gente tem que fazê o cimitério municipal:::!
Povo: É
:::: (Todos gritando e aplaudindo
animadamente)
Dorotéia Cajazeira (professora, vereadora e
apoiadora da campanha de Odorico e está na comitiva no palanque): Uma cidade que não respeita os seus mortos, não
pode ser respeitada pelos vivos! (Em tom alto de advertência)
Odorico: Pego
daí:::
Povo: É::::
(Todos gritando, amontoados em trajes sumários) Por traz do povo, vai passando
um cortejo fúnebre, levando um defunto carregado para outra cidade a pé.
Odorico: É
incrivi:: que essa cidade mui justamente chamada:, apelidada: e porque não
dizê: cognonimada::” a pérola do norti”!::: que é o orgulho do estado da
Bahia:::
Povo: É:::(
povo grita e bate palmas)
Odorico: pela
boniteza: da sua paisagi:: pelo arejamento e porque não dizê:: pela frescura do
seu clima!:::
Análise do diálogo
A partir da análise do
diálogo travado pelo candidato Odorico em seu discurso de campanha, o povo
reunido na praça da cidade e a apoiadora política professora Dorotéia, vemos pares
de adjacência que se alternam numa “conversa fictícia” onde os turnos são
negociados na fala-em-interação conforme os estudos de Dick Allwright (
1980). A agenda do Coronel Odorico estabelece a intenção pré determinada
de reforço da sua hegemonia a partir da negociação da conversa
consentida pelos atores fazendo a manutenção de agendas interacionais
por meio da seguinte estrutura de turnos:
1ª.
fala: Odorico, o candidato, toma um turno e dá início a uma interação
dirigindo-se ao povo em discurso.
2ª.
fala: O povo insere um turno durante o turno de Odorico interrompendo no
intuito de expressar a sua aprovação, demonstrando a hegemonia
representada pela aceitação do poder exercido pelo Coronel como parte da
liderança política e econômica da cidade.
3ª.
fala: Odorico, toma um turno novamente, e prossegue na sua interação
dirigida ao povo.
4ª.
fala: O povo insere um turno durante o turno de Odorico, encorajando e
apoiando-o.
5ª.
fala: Dorotéia insere um turno e
complementa a fala no turno de Odorico dirigindo-se ao povo.
6ª.
fala: Odorico aceita um turno respondendo a fala de Dorotéia.
7ª. fala:
O povo insere um turno interrompendo o turno de Odorico, aplaudindo e
apoiando-o.
8ª.
fala: Odorico toma um turno e continua seu discurso verborrágico.
9ª.
fala: O povo insere um turno, interrompendo o discurso após a pausa de
Odorico, aplaudindo-o calorosamente.
10ª.
fala: Odorico toma um turno novamente e continua seu discurso cheio de
neologismos, marcado pela linguagem regional nordestina e usando PNP (
português não padrão). Encerra-se a cena.
Análise das categorias plásticas do plano
de expressão
Como proposto no enunciado do
presente trabalho, usamos a semiótica greimasiana. A cena da novela O Bem
Amado apresenta além do texto escrito manifesto pelo discurso falado também o
texto visual que ajuda a compor o
sentido. Para analisar as relações
estabelecidas entre os diferentes elementos visuais que compõe o texto da cena
em questão e para entender o percurso de produção de sentido, partiremos das considerações
sobre as categorias eidética, topológica e cromática da semiótica greimasiana.
Observando a forma de construção dos
diferentes figuras do discurso, vemos que o cenário é composto por duas formas
de categoria eidética:
1- As
figuras dos personagens que estão no palanque que representam a classe
dominante incluindo o candidato Odorico e seus apoiadores políticos que usam
trajes mais elegantes.
2- As
figuras do povo que ocupam o plano mais baixo, sem proteção do sol e que
assistem ao discurso, manifestando-se através das saudações de apoio ou como o
Nezinho do Jegue que fica de braços cruzados, sério só escutando e analisando. O
povo se diferencia dos membros da elite por seus trajes mais despojados onde os
mais jovens, em especial as mulheres usam pouca roupa e expõe mais os corpos.
O
sentido que é sugerido de assimetria dos dois grupos, acesso a expressão e
influência, uso de trajes diferenciados. O povo se opõe aos políticos na forma
de se vestir e apresentar.
Na categoria topológica vemos que as
figuras estão dispostas em dois planos delimitados, alto e baixo. O plano alto
no palanque é ocupado pela elite social e o povo está situado no plano baixo. O
sentido sugerido reforça a assimetria dois grupos que se relacionam da seguinte
forma: os que mandam no alto e os que obedecem embaixo, demonstrando como a
hierarquia se faz presente no texto.
Na categoria cromática observa-se uma
cidade ensolarada típica do Nordeste com cores quentes predominantes. Odorico
se diferencia dos demais personagens pelo uso de terno e pela escolha da cor
branca. Há a sugestão de sentido de distinção entre o personagem principal e o
povo em geral ressaltando o seu destaque em relação aos demais. A rima de cores
sugere o branco como relacionado ao poder versus
outras cores para os que não detém o poder.
Conclusão
A utilização de textos
multimodais em sala de aula traz a possibilidade ao professor de elaborar
roteiros críticos. O gênero novela televisiva proporciona a aplicação da
metodologia crítica na análise tríplice ou tridimensional, em que as dimensões de
prática social (ideologia, hegemonia), prática discursiva (produção,
distribuição, consumo) e prática textual são analisadas simultaneamente. Este texto escrito por Dias Gomes foi
adaptado para vários gêneros como livro, peças, novelas de TV, séries, filmes
na utilização dos conceitos básicos ainda presentes na realidade socioeconômica
e política brasileira.
Abordando a constituição do
personagem principal, Odorico Paraguaçu, a partir de seus possíveis ethé, verifica-se que estes estão
relacionados aos imaginários sócio-discursivos da época em que a novela foi
produzida e ainda se verificam atuais. Com isso, percebe-se que na produção
recorreu-se aos imaginários políticos, para idealizar o personagem, aludindo
aos políticos e situações políticas do período (anos 70 – ditadura militar). Os
principais imaginários seriam do político coronel, e o imaginário do político
verborrágico, que ajudam a construir o ethos do personagem. De acordo
com a releitura do teórico Maingueneau (2004, p. 98- 99), o ethos é como um
fiador do que é dito em um discurso, uma espécie de voz que não está explícita
no enunciado e por isso mesmo é eficaz. As ideologias( “verdades”) são
explicitadas através da caricatura do coronel que usa expressões próprias
neologismos e palavras rebuscadas( ex: cognominada, cunjuntura), usa de
alianças e tramóias para alcançar seus objetivos, onde os fins justificam os
meios, máxima maquiavélica. Seu caráter duvidoso, traições e uso de dinheiro
público para se locupletar são apresentados em tom humorístico como uma farsa
para burlar a censura aos meios de comunicação vigente. O alcance (
distribuição) encontram o veículo da TV para se espalharem pelos lares de todo
o país. Os demais personagens representam assim: o povo na sua sabedoria popular,
a imprensa ( dita “marronzista” por Odorico) contrária ao Coronel, a polícia que representa a lei
que se filia à política e ao povo na garantia da ordem, as amantes de Odorico
membros da fina flor da sociedade, Zeca Diabo o justiceiro convertido por
“Padre Cícero” que acaba matando o coronel no fim tragicômico, Odorico por
ironia acaba inaugurando o Cemitério Municipal, o Nezinho do Jegue que ora
apóia Odorico e quando bebe o achincalha e outros personagens do povo típico de
cidade do interior do Nordeste. A prática social do político corrupto que usa o
cargo para enriquecer e favorecer seus protegidos é legitimada pela posição do
povo, imprensa opositora, polícia, críticos e bajuladores que mantém o
equilíbrio instável dessas forças ora se opõe ora se juntam no contexto da luta
hegemônica no Brasil. A dominação é garantida pela identidade legitimadora do
político sobre o povo que o elege e perpetua a sua ação de controle e
autoridade. O texto semiótico em todas as suas dimensões trabalha a conscientização
de que os cidadãos são responsáveis pelas mudanças sociais através de seu
posicionamento crítico. A intenção é desconstruir a tradição brasileira de país
colonizado pelo europeu em que se espera que “o pai” resolva os problemas e a
adoção de uma postura ativa de construção de identidades e transformações
sociopolíticas.
Referências:
BATISTA JÚNIOR, José Ribamar Lopes; SATO, Denise Tamaê
Borges; MELO, Iran Ferreira de. (org.). Análise de discurso crítica
para linguístas e não linguístas. São Paulo: Parábola Editorial,
2018.
FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e
mudança social. Brasília: Universidade de Brasília, 2001.
GEISEL,
Claudia Cristina Mendes. E-book Análise do Discurso, 2019. Disponível em:
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RESENDE, V. M; RAMALHO, V.
Análise do discurso crítica. São Paulo: Contexto, 2007.(Disponível na
Biblioteca Virtual)