terça-feira, 9 de março de 2021

REMINISCÊNCIAS E ESCRIVIVÊNCIA

 

 

             Carrego em mim a doce lembrança de minha avó materna que me criou. Ela partiu cedo desta vida, mas me deixou de herança seu amor e os melhores fios que me tecem. Quando menina, costumava cumprir um ritual de adoração: toda vez que ia à praia, trazia um baldinho com água do mar para banhá-la na nossa banheira. Eu aspergia as gotas da água do mar sobre o seu corpo como que reverenciando à Rainha das águas. Minhas referências sincretizadas, Oxum, Nossa Senhora da Conceição, minha avó as representava todas numa só carne. Na minha imaginação, essa água era benta e a imantava com a minha gratidão e desejo que vivesse para sempre!

 

            Cubro-me com essa espécie de parangolé, colcha de retalhos formada dos pedaços de memória rebelde, que se recusam a ir embora. Trago em mim a rebelião contra o mito freudiano de Édipo. Componho-me da ancestralidade das Deusas, mulheres que fizeram parte da minha vida e colorem minha pele de muitos tons.

             Recuso-me a crescer! Quero manter a eterna criança que deseja poesia que me provoca e desafia. Pois, crescer é perder a poesia. Talvez por isso, nós adoecemos à medida que nos afastamos da infância e da poesia consequentemente. Através da poesia, desapego desse ser doentio, apático e repetitivo, apartado da dúvida e da criatividade. Questiono os podres poderes e não me encaixo nos moldes. Não sirvo a esses senhores, não sou escrava do sistema capitalista! Reciclo todas as representações e me reinvento, buscando novos caminhos coados do peso da culpa.

            

             Todas as mulheres encerram em si canções de rebelião que pendem para um lado ou outro das questões que marcam a nossa sociedade partida por clamores de liberdade. Estou possuída, incorporada da revolta no melhor sentido nietzschiano, preciso matar aquilo que me mata! Grito por todas as mulheres com a esquizofrenia militante, sou filha de uma feminista, da revolução contra a ditadura, da fome por justiça e igualdade! Espero que esta saga feminina ancestral me inspire a levar avante o grito pela libertação das correntes. O peso das responsabilidades não me tira o ânimo. Alcanço a leveza através do amor que incinera a covardia.

 

             O conto de Conceição Evaristo desagua meus olhos que se sensibilizaram ao passearam pelo Quarto de Despejo de Carolina de Jesus. A realidade das mulheres que se repete no cotidiano de uma população que vive o preconceito em especial às mulheres negras e pobres como no relato da jornalista Bianca Santana do movimento Não me Khalo. Daí das alturas onde as minhas ancestrais vivem agora, podem ver o meu esforço para não esquecer das minhas origens.

 

            Caso me fosse dada a possibilidade de voltar a viver, eu aceitaria de bom grado revistar todas as dores e delícias. “Quero isto ainda uma vez e inúmeras vezes”. Sou os muitos livros que li, as bênçãos, rezas, pajelanças, dívidas, dúvidas e dádivas que contraí. Sou feita de sustos, soluços, lágrimas, gargalhadas, bem-queiranças. Confesso que vivi, lembranças das andanças, muito mais das esperanças, divididas com quem convivi. Trago em mim a fome de vida dos refugiados da inquisição, que alcançaram o exílio nas terras tupiniquins em busca da liberdade de professar as suas crenças. Por que se mata em nome de Deus? Não encontro resposta para essa iniquidade. Lembrar convoca a dubiedade do amargo remédio: o veneno, é também o antídoto. O que não me mata, me fortalece como falava Nietzsche. Assim, fico em paz, mas com o rebuliço das reminiscências da minha escrivivência!


Nathalia Leão Garcia

Rio de Janeiro, 09 de março de 2021.




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