segunda-feira, 3 de fevereiro de 2020

Análise Crítica de Discurso - novelas e séries O BEM AMADO, aproximando o cotidiano da sala de aula.


Análise de novelas e séries: aproximando o cotidiano da sala de aula.

Introdução

            A cena escolhida refere-se a um discurso de campanha política e é parte da novela O Bem-Amado de 1973 da TV Globo, baseada no livro homônimo escrito por Dias Gomes em 1962 e alcançou grande audiência e popularidade, sendo a primeira novela colorida da história. O estilo de farsa política driblava a censura da época da ditadura para tratar no fundo de um assunto sério: a política sem escrúpulos, truculenta e corrompida dos coronéis “donos do poder” da época.  É de se destacar o tom jocoso do discurso do Coronel Odorico Paraguaçu que se candidata a Prefeitura da cidade fictícia de Sucupira na Bahia, tendo como plataforma política a construção de um cemitério na cidade, já que os defuntos eram enterrados na cidade vizinha. O rico e poderoso Odorico descobriu uma forma de chegar ao cargo público e se beneficiar com a construção do cemitério em Sucupira, usando de todos os meios, lícitos e ilícitos para alcançar seu objetivo. Este excerto da obra ganha importância para a discussão em sala de aula por demonstrar claramente o poder exercido pelo personagem principal Odorico Paraguaçu sobre o povo da cidade, caracterizando uma hegemonia, termo do filósofo marxista Antonio Gramsci, que se refere ao “domínio exercido pelo poder de um grupo sobre os demais, baseado mais no consenso do que no uso da força” (RESENDE; RAMALHO, 2009, p.43).
Apresentação
          Link da cena (https://www.youtube.com/watch?v=0huzZXT-n_g)
          A cena do discurso de Odorico em campanha para Prefeito, que se dá num palanque montado na praça da pequena cidade encontramos uma fala teatral “afetada”, grandiloquente, teatral, verborrágica, rebuscada, sendo muitas vezes vazia em termos de conteúdo, procura seduzir os incautos eleitores. A posição do palanque demonstra a dominação do povo: os poderosos da cidade em cima e o povo embaixo.
          Transcrição dos diálogos da cena analisada:
Odorico (em altos brados, gesticulando): Meus conterrâneos de Sucupira! Essa cidade num pode continuar nessa situação! (pausa para aplausos e apoio da população)
Povo: Gritos de apoio, todos ovacionando e aplaudindo Odorico, exceto um personagem de braços cruzados, calado e sério logo na frente da multidão, o Nezinho do Jegue.
Odorico (continua no mesmo tom alto no palanque): Na atual cunjuntura:: a gente tem que fazê o cimitério municipal:::!
Povo: É :::: (Todos gritando e aplaudindo animadamente)
Dorotéia Cajazeira (professora, vereadora e apoiadora da campanha de Odorico e está na comitiva no palanque): Uma cidade que não respeita os seus mortos, não pode ser respeitada pelos vivos! (Em tom alto de advertência)
Odorico: Pego daí:::
Povo: É:::: (Todos gritando, amontoados em trajes sumários) Por traz do povo, vai passando um cortejo fúnebre, levando um defunto carregado para outra cidade a pé.
Odorico: É incrivi:: que essa cidade mui justamente chamada:, apelidada: e porque não dizê: cognonimada::” a pérola do norti”!::: que é o orgulho do estado da Bahia:::
Povo: É:::( povo grita e bate palmas)
Odorico: pela boniteza: da sua paisagi:: pelo arejamento e porque não dizê:: pela frescura do seu clima!:::
Análise do diálogo
          A partir da análise do diálogo travado pelo candidato Odorico em seu discurso de campanha, o povo reunido na praça da cidade e a apoiadora política professora Dorotéia, vemos pares de adjacência que se alternam numa “conversa fictícia” onde os turnos são negociados na fala-em-interação conforme os estudos de Dick Allwright ( 1980). A agenda do Coronel Odorico estabelece a intenção pré determinada de reforço da sua hegemonia a partir da negociação da conversa consentida pelos atores fazendo a manutenção de agendas interacionais por meio da seguinte estrutura de turnos:
1ª. fala: Odorico, o candidato, toma um turno e dá início a uma interação dirigindo-se ao povo em discurso.
2ª. fala: O povo insere um turno durante o turno de Odorico interrompendo no intuito de expressar a sua aprovação, demonstrando a hegemonia representada pela aceitação do poder exercido pelo Coronel como parte da liderança política e econômica da cidade.
3ª. fala: Odorico, toma um turno novamente, e prossegue na sua interação dirigida ao povo.
4ª. fala: O povo insere um turno durante o turno de Odorico, encorajando e apoiando-o.
5ª. fala: Dorotéia insere um turno  e complementa a fala no turno de Odorico dirigindo-se ao povo.
6ª. fala: Odorico aceita um turno respondendo a fala de Dorotéia.
7ª. fala: O povo insere um turno interrompendo o turno de Odorico, aplaudindo e apoiando-o.
8ª. fala: Odorico toma um turno e continua seu discurso verborrágico.
9ª. fala: O povo insere um turno, interrompendo o discurso após a pausa de Odorico, aplaudindo-o calorosamente.
10ª. fala: Odorico toma um turno novamente e continua seu discurso cheio de neologismos, marcado pela linguagem regional nordestina e usando PNP ( português não padrão). Encerra-se a cena.
Análise das categorias plásticas do plano de expressão
      Como proposto no enunciado do presente trabalho, usamos a semiótica greimasiana. A cena da novela O Bem Amado apresenta além do texto escrito manifesto pelo discurso falado também o texto visual que ajuda a compor  o sentido.  Para analisar as relações estabelecidas entre os diferentes elementos visuais que compõe o texto da cena em questão e para entender o percurso de produção de sentido, partiremos das considerações sobre as categorias eidética, topológica e cromática da semiótica greimasiana.
      Observando a forma de construção dos diferentes figuras do discurso, vemos que o cenário é composto por duas formas de categoria eidética:
1-      As figuras dos personagens que estão no palanque que representam a classe dominante incluindo o candidato Odorico e seus apoiadores políticos que usam trajes mais elegantes.
2-      As figuras do povo que ocupam o plano mais baixo, sem proteção do sol e que assistem ao discurso, manifestando-se através das saudações de apoio ou como o Nezinho do Jegue que fica de braços cruzados, sério só escutando e analisando. O povo se diferencia dos membros da elite por seus trajes mais despojados onde os mais jovens, em especial as mulheres usam pouca roupa e expõe mais os corpos.
O sentido que é sugerido de assimetria dos dois grupos, acesso a expressão e influência, uso de trajes diferenciados. O povo se opõe aos políticos na forma de se vestir e apresentar.

    Na categoria topológica vemos que as figuras estão dispostas em dois planos delimitados, alto e baixo. O plano alto no palanque é ocupado pela elite social e o povo está situado no plano baixo. O sentido sugerido reforça a assimetria dois grupos que se relacionam da seguinte forma: os que mandam no alto e os que obedecem embaixo, demonstrando como a hierarquia se faz presente no texto.

       Na categoria cromática observa-se uma cidade ensolarada típica do Nordeste com cores quentes predominantes. Odorico se diferencia dos demais personagens pelo uso de terno e pela escolha da cor branca. Há a sugestão de sentido de distinção entre o personagem principal e o povo em geral ressaltando o seu destaque em relação aos demais. A rima de cores sugere o branco como relacionado ao poder versus outras cores para os que não detém o poder.
             
Conclusão

             A utilização de textos multimodais em sala de aula traz a possibilidade ao professor de elaborar roteiros críticos. O gênero novela televisiva proporciona a aplicação da metodologia crítica na análise tríplice ou tridimensional, em que as dimensões de prática social (ideologia, hegemonia), prática discursiva (produção, distribuição, consumo) e prática textual são analisadas simultaneamente.  Este texto escrito por Dias Gomes foi adaptado para vários gêneros como livro, peças, novelas de TV, séries, filmes na utilização dos conceitos básicos ainda presentes na realidade socioeconômica e política brasileira.
             Abordando a constituição do personagem principal, Odorico Paraguaçu, a partir de seus possíveis ethé, verifica-se que estes estão relacionados aos imaginários sócio-discursivos da época em que a novela foi produzida e ainda se verificam atuais. Com isso, percebe-se que na produção recorreu-se aos imaginários políticos, para idealizar o personagem, aludindo aos políticos e situações políticas do período (anos 70 – ditadura militar). Os principais imaginários seriam do político coronel, e o imaginário do político verborrágico, que ajudam a construir o ethos do personagem. De acordo com a releitura do teórico Maingueneau (2004, p. 98- 99), o ethos é como um fiador do que é dito em um discurso, uma espécie de voz que não está explícita no enunciado e por isso mesmo é eficaz. As ideologias( “verdades”) são explicitadas através da caricatura do coronel que usa expressões próprias neologismos e palavras rebuscadas( ex: cognominada, cunjuntura), usa de alianças e tramóias para alcançar seus objetivos, onde os fins justificam os meios, máxima maquiavélica. Seu caráter duvidoso, traições e uso de dinheiro público para se locupletar são apresentados em tom humorístico como uma farsa para burlar a censura aos meios de comunicação vigente. O alcance ( distribuição) encontram o veículo da TV para se espalharem pelos lares de todo o país. Os demais personagens representam assim: o povo na sua sabedoria popular, a imprensa ( dita “marronzista” por Odorico) contrária  ao Coronel, a polícia que representa a lei que se filia à política e ao povo na garantia da ordem, as amantes de Odorico membros da fina flor da sociedade, Zeca Diabo o justiceiro convertido por “Padre Cícero” que acaba matando o coronel no fim tragicômico, Odorico por ironia acaba inaugurando o Cemitério Municipal, o Nezinho do Jegue que ora apóia Odorico e quando bebe o achincalha e outros personagens do povo típico de cidade do interior do Nordeste. A prática social do político corrupto que usa o cargo para enriquecer e favorecer seus protegidos é legitimada pela posição do povo, imprensa opositora, polícia, críticos e bajuladores que mantém o equilíbrio instável dessas forças ora se opõe ora se juntam no contexto da luta hegemônica no Brasil. A dominação é garantida pela identidade legitimadora do político sobre o povo que o elege e perpetua a sua ação de controle e autoridade. O texto semiótico em todas as suas dimensões trabalha a conscientização de que os cidadãos são responsáveis pelas mudanças sociais através de seu posicionamento crítico. A intenção é desconstruir a tradição brasileira de país colonizado pelo europeu em que se espera que “o pai” resolva os problemas e a adoção de uma postura ativa de construção de identidades e transformações sociopolíticas.
            
Referências:

As estratégias políticas de O Bem Amado, farsa sociopolítica. Disponível em: https://repositorio.ufmg.br/bitstream/1843/MGSS-A7PR8Q/1/disserta__o_vers_o_definitiva_da_definitiva__1__revista_el_.pdf Acesso em: 6 nov. 2019.

BATISTA JÚNIOR, José Ribamar Lopes; SATO, Denise Tamaê Borges; MELO, Iran Ferreira de. (org.). Análise de discurso crítica para linguístas e não linguístas. São Paulo: Parábola Editorial, 2018.

Cena da novela O Bem Amado (1973) - O discurso de Odorico para prefeito. Disponível em:   https://www.youtube.com/watch?time_continue=2&v=0huzZXT-n_g Acesso em: 4 nov. 2019.

FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e mudança social. Brasília: Universidade de Brasília, 2001.

GEISEL, Claudia Cristina Mendes. E-book Análise do Discurso, 2019. Disponível em:  ead.uva.br/filemanager/file/documentos/EBOOK/ADD_ebook.pdf

 

Linguagem e discurso. Elementos de Semiolinguística. Disponível em:   https://www.academia.edu/5911357/Linguagem_e_Discurso_-_Charaudeau Acesso em 7 nov. 2019.
O livro O Bem-Amado de Dias Gomes. Disponível em:  https://www.culturagenial.com/livro-o-bem-amado-dias-gomes/  Acesso em: 5 nov. 2019.
         
RESENDE, V. M; RAMALHO, V. Análise do discurso crítica. São Paulo: Contexto, 2007.(Disponível na Biblioteca Virtual)

http://televisao.uol.com.br/noticias/redacao/2013/01/18/escrita-por-comunista-o-bem-amado-teve-37-capitulos-retalhados-pela-censura.htm


REMINISCÊNCIAS E ESCRIVIVÊNCIA

                 Carrego em mim a doce lembrança de minha avó materna que me criou. Ela partiu cedo desta vida, mas me deixou de herança s...