As vozes negras foram alijadas do sistema literário brasileiro e permanecem até hoje numa espécie de clandestinidade. O Brasil apresenta problemas relativos ao “apagamento” e não identificação deste “sujeito” tão marginalizado ao longo do tempo, apesar de nosso povo ser formado por uma miscigenação racial. O significado simbólico dessa rara manifestação autoral negra pode ser identificada como elemento de resistência estética e política presentes nas suas obras, que contam outras histórias, engendrando, assim, diferentes formas de compreender e elaborar o mundo a partir de novas perspectivas históricas e sociais ao assumir o comando e a autoria de sua própria escrita. O resultado concorre para o estabelecimento de um sistema literário baseado na heterogeneidade, na pluralidade e na diversidade.
No presente ensaio, procuro levantar os elementos singulares percebidos na poesia crítica "Quem Sou Eu?", ou "A Bodarrada", de Luiz Gama, intelectual advogado autodidata, que foi o precursor do abolicionismo no Brasil a partir da ótica afro-brasileira. Nasceu em 1830 na Bahia filho de uma escrava Mina e um português e faleceu em 1882. Foi irreverente e inovador porque que se assumia como negro e tinha coragem de se expressar por meio da suas poesias que tinham um frescor renovador e deixavam claro seu ponto de vista diferenciado com relação às causas do negro no Brasil o que representou uma quebra na hegemonia do discurso privilegiado.
Sua história ímpar como advogado, escritor e ativista, revela a posição abolicionista no seu trabalho em tribunais de São Paulo conseguindo libertar mais de 500 escravos assim mantidos injustamente. Defendia valores republicanos e trabalhava ativamente na crítica da sociedade influenciada fortemente por ideologias racistas, como pode ser comprovado pela fala de Rui Barbosa que usou o termo "negro, mas genial" que teria sido utilizado como qualificativo ao se referir a Luiz Gama em momento pós-abolicionista.
A escritura autoral de Gama teve grande repercussão na época que publicou em 1859 seu único livro de poesias "Primeiras Trovas Burlescas do Getulino", uma coletânea de poesias satíricas que ridicularizavam a aristocracia e os homens de poder da época, numa clara intenção de desmontar a estrutura preconceituosa e a legitimação da fala “branca” para representar o pensamento identitário negro. Num país preconceituoso Luiz Gama reluzia o orgulho da sua cor e origens africanas que consolida a sua imagem no lugar que pertencia e que era dominado apenas pelos brancos. O eu poético mesmo vivendo em um tempo em que ser negro era sinônimo de ser escravo ou descendente de escravo.
Gama ousa escrever o seu tempo apropriando-se de vocabulário erudito, demonstrando gosto pelas alusões à literatura clássica e alegorias da mitologia grega. Também inaugurou a imprensa humorística paulistana ao fundar, em 1864, o jornal "Diabo Coxo". Como poeta satírico, ocultou-se, sob o pseudônimo de Afro, “Getulino e Barrabás”. Em seu célebre poema “A Bodarrada” ironizava quem tentava negar a influência africana na formação da identidade nacional brasileira. Gama demonstra orgulho de sua condição ao admitir no poema que também era bode (termo pejorativo usado para ridicularizar os negros), tornando-se o pioneiro escritor brasileiro a assumir completamente a sua identidade negra, o que o tornou fundador da literatura da militância negra no Brasil. A fim de estabelecer a sua marca crítica em relação à sociedade de seu tempo faz uso da palavra “bode” na referida poesia satírica como forma de retribuir de forma pejorativa o tratamento que era dado na época aos negros. Assumindo a identidade negra, ele também denuncia que os tais “bodes” se encontravam representados em toda a sociedade, chegando até os altos escalões da sociedade brasileira, como no trecho extraído:
“Se negro sou, ou sou bode
Pouco importa. O que isto pode?
Bodes há de toda casta
Pois que a espécie é muito vasta...
Há cinzentos, há rajados,
Baios, pampas e malhados,
Bodes negros, bodes brancos,
E, sejamos todos francos,
Uns plebeus e outros nobres.
Bodes ricos, bodes pobres,
Bodes sábios importantes,
E também alguns tratantes...
Aqui, nesta boa terra,
Marram todos, tudo berra;”
Através da poesia “A Bodarrada” temos a oportunidade de refletir sobre a concepção da literatura negra no Brasil como forma de resistência e compreender as transformações ocorridas nessa construção de identidade e os fatores intrínsecos que foram cruciais para essa mudança de representação antes atribuída aos referendados intelectuais brancos como Joaquim Manuel de Macedo que representava a voz do abolicionismo chancelado pela classe dominante no Brasil. Gama usa a literatura como forma de expressão com o poder de construir ideologias, posicionamentos, imagens, representações de identidades da etnia africana e também ocupa um papel social de espaço de denuncia retratando a trajetória do negro na sua poesia. Essa construção de “identidade” tem íntima relação com os interesses econômicos, sociais, políticos e culturais, que são conhecidas e apontadas por Gama que detém o conhecimento do modo de operar da política desde a burocracia até a corrupção já entranhada nos hábitos deste país.
A literatura é referenciada como um dos pilares da formação burguesa humanista, que ao assumir um papel social de espaço de denúncia, retrata a presença da africanidade na construção da cultura nacional e toda a trajetória do negro. Assim se dá o posicionamento de Gama diante da problemática social negra no livro Gamacopéia de Silvio Roberto dos Santos Oliveira:
“Na poesia de Luiz Gama é imprescindível observar o deslocamento de olhar. Não é um olhar eurocêntrico versando sobre mestiçagem. Também não é um olhar africano. Não é o olhar branco comiserado pelas agruras negras. Não é o olhar negro apenas lacrimejando em território branco. Trata-se de um olhar plural a partir de uma perspectiva de um homem negro intelectualizado (OLIVEIRA, 2004, p. 230).”
Por fim, destaco como as características literárias desta poesia apontam para uma nova vertente dentro da literatura brasileira ao expor e dar voz aos negros. Desta forma o afro-brasileiro deixa de ser apenas objeto da enunciação para assumir o papel de sujeito com direito a vez e a voz enunciadora nas escrituras de Gama se apropriando de um direito que até então era dado somente aos brancos. Com sua atuação como líder político usa a sua raça, história de vida e a memória da escravidão para mediar a realidade social e as relações étnico-raciais que se materializam na construção de um lugar para o surgimento da identidade da diáspora negra. Porém, há muito o que fazer ainda para efetivar estas conquistas. Inclusive cabe informar que apenas neste ano de 2018, Luiz Gama foi declarado oficialmente o patrono da abolição dos escravos no Brasil e foi escrito no Livro dos Heróis da Pátria, honraria post-mortem concedida pela presidência de um país que não fez as pazes com a sua memória.
Referências
A luta pela identidade: a construção de uma literatura autenticamente negra dos séculos XIX ao XXI. Disponível em http://www.editorarealize.com.br/revistas/conedu/trabalhos/trabalho_ev056_md1_sa9_id1250_20082016000521.pdf
Lei declara advogado Luiz Gama patrono da abolição da escravidão no Brasil. disponível em : https://www.migalhas.com.br/Quentes/17,MI272598,81042-Lei+declara+advogado+Luiz+Gama+patrono+da+abolicao+da+escravidao+no
Luís Gama e a Consciência Negra na Literatura Brasileira. Disponível em: https://portalseer.ufba.br/index.php/afroasia/article/viewFile/20858/13458
Luiz Gama - Heróis. Disponível em: http://antigo.acordacultura.org.br/herois/heroi/luizgama
Luiz Gama e a sátira racial como poesia da transgressão: poéticas diaspóricas como contra narrativa à ideia de raça. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/alm/n11/pt_2236-4633-alm-11-00707.pdf
OLIVEIRA, Sílvio Roberto dos Santos. Gamacopéia: ficções sobre o poeta Luiz Gama. Campinas, SP, 2004. Disponível em: http://repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269857/1/Oliveira_SilvioRobertodosSantos_D.pdf
O Negro como Sujeito na Poesia de Luiz Gama, TCC 2013. Disponível em: http://www.saberaberto.uneb.br/jspui/bitstream/20.500.11896/825/1/TccDarleteSilvaMagnoliaPaixao.pdf