Carrego em mim a doce
lembrança de minha avó materna que me criou. Ela partiu cedo desta vida, mas me
deixou de herança seu amor e os melhores fios que me tecem. Quando menina,
costumava cumprir um ritual de adoração: toda vez que ia à praia, trazia um
baldinho com água do mar para banhá-la na nossa banheira. Eu aspergia as gotas
da água do mar sobre o seu corpo como que reverenciando à Rainha das águas.
Minhas referências sincretizadas, Oxum, Nossa Senhora da Conceição, minha avó
as representava todas numa só carne. Na minha imaginação, essa água era benta e
a imantava com a minha gratidão e desejo que vivesse para sempre!
Cubro-me com essa
espécie de parangolé, colcha de retalhos formada dos pedaços de memória
rebelde, que se recusam a ir embora. Trago em mim a rebelião contra o mito
freudiano de Édipo. Componho-me da ancestralidade das Deusas, mulheres que
fizeram parte da minha vida e colorem minha pele de muitos tons.
Recuso-me a crescer!
Quero manter a eterna criança que deseja poesia que me provoca e desafia. Pois,
crescer é perder a poesia. Talvez por isso, nós adoecemos à medida que nos
afastamos da infância e da poesia consequentemente. Através da poesia, desapego
desse ser doentio, apático e repetitivo, apartado da dúvida e da criatividade.
Questiono os podres poderes e não me encaixo nos moldes. Não sirvo a esses
senhores, não sou escrava do sistema capitalista! Reciclo todas as
representações e me reinvento, buscando novos caminhos coados do peso da culpa.
Todas as mulheres
encerram em si canções de rebelião que pendem para um lado ou outro das
questões que marcam a nossa sociedade partida por clamores de liberdade. Estou
possuída, incorporada da revolta no melhor sentido nietzschiano, preciso matar
aquilo que me mata! Grito por todas as mulheres com a esquizofrenia militante,
sou filha de uma feminista, da revolução contra a ditadura, da fome por justiça
e igualdade! Espero que esta saga feminina ancestral me inspire a levar avante
o grito pela libertação das correntes. O peso das responsabilidades não me tira
o ânimo. Alcanço a leveza através do amor que incinera a covardia.
O conto de Conceição
Evaristo desagua meus olhos que se sensibilizaram ao passearam pelo Quarto
de Despejo de Carolina de Jesus. A realidade das mulheres que se repete no
cotidiano de uma população que vive o preconceito em especial às mulheres
negras e pobres como no relato da jornalista Bianca Santana do movimento Não
me Khalo. Daí das alturas onde as minhas ancestrais vivem agora, podem ver
o meu esforço para não esquecer das minhas origens.
Caso me fosse dada a
possibilidade de voltar a viver, eu aceitaria de bom grado revistar todas as
dores e delícias. “Quero isto ainda uma vez e inúmeras vezes”. Sou os
muitos livros que li, as bênçãos, rezas, pajelanças, dívidas, dúvidas e dádivas
que contraí. Sou feita de sustos, soluços, lágrimas, gargalhadas,
bem-queiranças. Confesso que vivi, lembranças das andanças, muito mais das
esperanças, divididas com quem convivi. Trago em mim a fome de vida dos
refugiados da inquisição, que alcançaram o exílio nas terras tupiniquins em
busca da liberdade de professar as suas crenças. Por que se mata em nome de
Deus? Não encontro resposta para essa iniquidade. Lembrar convoca a dubiedade
do amargo remédio: o veneno, é também o antídoto. O que não me mata, me
fortalece como falava Nietzsche. Assim, fico em paz, mas com o rebuliço das
reminiscências da minha escrivivência!
Nathalia Leão Garcia
Rio de Janeiro, 09 de março de 2021.